A Última Ceia

Meus queridos leitores, uma vez  que recebi uma série de perguntas sobre a Última Ceia, decidi, mais uma vez, abordar o assunto nestas páginas. A natureza precisa da última refeição que Jesus compartilhou com seus discípulos, bem como o dia e a data de sua crucificação, estão entre os tópicos mais debatidos ao longo da história do Novo Testamento. Jesus foi crucificado naquele dia específico e no momento específico em que os cordeiros da Páscoa eram mortos no Pátio do Templo? Nesse caso, a Última Ceia não poderia ser um Séder —a refeição festiva que marca o início da Páscoa—. No entanto, se foi a primeira noite da Páscoa, quando Jesus e seus discípulos tiveram a Última Ceia, neste caso, foi realmente o Séder. Então, o que era essa ceia?

Esta questão tem sido objeto de muita discussão por um longo tempo. Muitos estudiosos respeitados comentaram sobre esse tópico ao longo dos anos e, é claro, não espero que vocês aceitem minha opinião. O objetivo desses artigos não é provar nada ou dar as respostas finais: quero apenas mostrar que existem várias possibilidades para apresentar os dias finais de Jesus como uma história sólida e não controversa. Para esse fim, gostaria de trazer algumas ideias Hebraicas para a discussão. Sem conhecer os costumes da Páscoa que existiam na época de Jesus, podemos realmente perder muita coisa —e é precisamente aqui que muitas respostas e explicações das discrepâncias nas Escrituras (por exemplo, entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João) devem ser buscadas—.

Vamos primeiro discutir a visão tradicional: Jesus foi crucificado na sexta-feira, dia 15 de Nisán, e a Última Ceia foi realmente um Séder de Páscoa. De acordo com essa visão tradicional, a refeição da Páscoa acontece na quinta-feira à noite. O dia de quinta-feira era o dia 14 de Nisán, mas ao entardecer tornou-se o dia 15 de Nisán. Ao pôr do sol, no início do dia 15 de Nisán, no momento da refeição da Páscoa, Jesus e seus discípulos se reuniram no Cenáculo de Jerusalém para celebrar a festa. Depois da refeição, muito tarde naquela noite ou depois da meia-noite, Jesus foi preso no Monte das Oliveiras. Ao amanhecer, quando o primeiro cordeiro do sacrifício diário é amarrado ao altar, Jesus é condenado pela corte Judaica e enviado ao governador Romano, Pilatos. Deve-se notar que a palavra Pésaj não se aplica exclusivamente ao cordeiro pascal na véspera da festa, mas é usada nas escrituras e no Talmúd em um sentido mais amplo para todo o festival, incluindo os sacrifícios de chagiga oferecidos no dia 15 de Nisán. Assim, às 9 horas da manhã (a terceira hora), quando Jesus é crucificado na cruz, o primeiro cordeiro do sacrifício diário de chagiga é oferecido no altar do templo. Na novena hora, ou 3:00 p.m., na hora do segundo sacrifício diário, Jesus morre na cruz.

Essa visão parece ser apoiada pelos Evangelhos Sinóticos. No entanto, todos estamos cientes das dificuldades associadas a essa abordagem tradicional. Antes de tudo, existe um problema bem conhecido de discrepância entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João, que aparentemente data todos esses eventos um dia antes dos Sinóticos. Numerosas tentativas foram feitas para harmonizar todos os Evangelhos, em particular com a ajuda do conceito de «calendários diferentes»: se calendários diferentes estavam em uso, então os dias de festa eram calculados de forma diferente por grupos diferentes. Primeiro, os estudiosos distinguiram entre a data Farisaica da Páscoa e a data dos Saduceus um dia antes, o que pode estar por trás do Evangelho de João. Ainda mais promissor é o fato de os Essênios também usarem seu próprio calendário. A famosa história do homem com um jarro de água[1] é baseada nisso: um homem carregando água só poderia ter sido um Essênio; os Essênios tinham suas comunidades em várias cidades, e também em Jerusalém, e como usavam um calendário diferente, seus quartos de hóspedes ainda estavam disponíveis. Por isso Jesus sabia que haveria uma sala disponível para a Última Ceia —e Ele também pode ter seguido o calendário deles—.

Existem vários outros problemas relacionados a essa abordagem. Pessoalmente, sempre fiquei perplexa com o fato de que quando Judas foi embora, «alguns pensaram, que porque Judas tinha a bolsa de dinheiro, que Jesus lhe tinha dito: “Compre as coisas que precisamos para a festa“».[2] No Israel de hoje, tudo seria fechado durante a festa, mas mesmo que algo estivesse aberto, nenhum Judeu devoto pensaria em fazer algo com o dinheiro, se realmente fosse a festa. No entanto, a principal questão, é claro, é: onde está o sinal de Jonas? Como podemos fazer três dias e três noites se Ele morreu na Sexta-feira e ressuscitou no Domingo? Quase 40 horas se passaram entre sua morte e ressurreição. Onde está o sinal de Jonas?

 

 

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Pessoalmente, não acho que tenha sido a refeição tradicional da Páscoa. Por quê? Lemos no Mishná:

«Um cordeiro pascal não será válido se for abatido para aqueles que não o comerão».[3]

O cordeiro pascal tinha que ser comido durante a refeição da Páscoa. O ato de comer o sacrifício pascal era a parte principal do Séder e, portanto, a refeição que acontecia ANTES do sacrifício, por definição, não poderia ser o Séder.

No entanto, se não era o Séder, o que era? Qual era a natureza dessa refeição? Antes de realmente iniciarmos o nosso diálogo, deixe-me compartilhar com vocês algumas citações adicionais do Mishna, do mesmo tratado Pesajím:

«…Os sábios dizem que em Judá eles trabalhariam no dia anterior ao Pésaj até o meio-dia, enquanto na Galileia eles não trabalhariam».

Onde é costume trabalhar até o meio dia do dia anterior à Páscoa, as pessoas podem trabalhar; onde não é costume fazer isso, as pessoas não podem… Quando alguém vai de um local onde se trabalha para um local onde não se trabalha (ou de um local onde não se trabalha para um local onde se trabalha), aplicamos as restrições mais severas tanto do lugar de onde se vem quanto do lugar para onde se vai…[4]

Vemos que havia diferentes tradições de festivais em lugares diferentes —e se as pessoas viajam, as restrições mais severas se aplicam—. Como todos sabemos, Jesus e seus discípulos eram Galileus —e a diferença mais importante entre a observância da Páscoa na Judéia e na Galileia era um jejum especial— o jejum dos primogênitos, em memória dos Israelitas primogênitos que foram salvos da morte (é por isso que nós lemos no Mishná que «na Galileia, eles não trabalhavam o dia todo» no dia da Páscoa). O jejum Galileu ocorria no dia 14 de Nisán, no dia da Páscoa.[5]

Em Hebraico, a última refeição antes do jejum é chamada seudá mafséket (se vocês já estiveram em Israel para o Yóm Kipúr, vocês sabem que o seudá mafséket, a última refeição antes do jejum do Yóm Kipúr, é realmente um evento muito especial). Assim, na tradição da Galileia, tinha que haver esta refeição especial no início da Páscoa (dia 14 de Nisán ) chamado seudá mafséket. Após essa refeição, haveria um dia inteiro em jejum —e a refeição seguinte seria a refeição da Páscoa, o Séder—. Nesse sentido, essa refeição era de fato a Última Ceia.[6]

 

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[1] Marcos 14:13.

[2] João 13:29.

[3] Mishna, Tractate Pesachim, Chapter 5 Mishna 3

[4] Mishna, Pesachim, Chapter 4, Mishna 1

[5] Vocês podem ler mais sobre isso em:  David H. Stern, Jewish New Testament Commentary, ­ Jewish New Testament Publications, 1995, p. 77.

[6] Sou grata a Tom Bradford, do TorahClass.com, por essa ideia.

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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