Começos: Arca De Noé

Temos discutido aqui a história do dilúvio e tocado em diferentes temas. No entanto, acho que todos concordariam que a arca de Noé está no centro desta história. Portanto, é a arca que se torna a mensagem profética de Deus para a humanidade futura. Antigamente, as pessoas jogavam ao mar uma garrafa contendo uma mensagem e, anos depois, ela seria encontrada e a mensagem contida nela seria lida. Esta é a imagem que tenho para a arca de Noé: a mensagem profética está dentro desta história, e é nossa tarefa «abri-la» para entender a mensagem. O próprio Noé provavelmente não percebeu totalmente o significado profético de sua própria história (assim como as pessoas que jogam uma garrafa no mar não sabem quando e por quem ela será encontrada) mas Deus definitivamente sabia: Ele jogou esta Arca lacrada nas ondas, para nós abrirmos e lermos. Hoje, ao abrirmos esta mensagem antiga, o que encontramos lá?

Revestir ou expiar?

Em primeiro lugar, gostaria de compartilhar mais uma vez aquele incrível segredo da arca —sód— que descobrimos apenas quando lemos sua descrição em Hebraico. Quando Deus instruiu Noé como construir a arca, Ele ordenou-lhe «a revestirás com piche por dentro e por fora».[1] Parece uma mera descrição técnica, e vocês podem nunca ter pensado muito sobre esse versículo. No entanto, quando lida em Hebraico, inesperadamente encontramos aqui uma raiz כפר (kafár: káf-péi-résh): «vehafartá otá mibáit umihútz bekofér».

Se vocês conhecem um pouco sobre Israel e Hebraico, provavelmente saberiam o que é Yóm Kipúr e, portanto, saberiam o significado da raiz  כֹּפֶר. Todos os possíveis significados desta raiz têm a ver com «expiação» (ou assim as pessoas pensam). Mas Yóm Kipúr, assim como todo o conceito de expiação, só será apresentado muito mais tarde. Por que então esse verbo seria usado aqui, na história de Noé? Não encontramos a palavra «expiação», ou qualquer coisa referente à expiação, no texto traduzido, então, o que está acontecendo aqui? Por que essa surpreendente palavra raiz ocorre aqui no texto Hebraico e por que então ela desaparece na tradução? Esta palavra é muito significativa, muito profunda, muito importante para todos os seus significados redentores futuros e, portanto, não pode ser ignorada.

Se quiserem, vamos comigo a um dicionário e mais uma vez vocês ficarão impressionados (como eu fiquei, e tenho estado desde então) pela incrível profundidade de Sua Palavra e Seu idioma. Em meu último artigo, comentando outro exemplo do mesmo capítulo, escrevi: «Os verbos em Hebraico são derivados das raízes, na maioria das vezes mudando vogais e adicionando diferentes prefixos e sufixos, formando assim diferentes radicais. Dependendo do tronco (binyán), os verbos da mesma raiz podem ter significados muito diferentes, como vemos aqui em nosso texto. No entanto, sendo derivados da mesma raiz, todos eles têm algo em comum, todos eles se relacionam com a mesma “essência”». Devemos definitivamente lembrar que, neste caso, quando encontramos no dicionário dois verbos derivados da mesma raiz, com dois significados completamente diferentes:

(qal): כפר (kafár) – revestir algo com piche; e

(piel) כיפר (kipér) – expiar, perdoar

Assim, esta ordem muito técnica «a revestirás com piche por dentro e por fora» —em Hebraico soa quase como uma declaração teológica—. Todos nós sabemos, é claro, que o dilúvio e a arca são grandes símbolos da punição dos ímpios e salvação dos justos; porém, sem o Hebraico, perdemos completamente algo que é evidente no texto original: a história de Noé é a história da expiação, porque a raiz «expiar» está lá desde o início desta história.

Deus se lembrou de Noé 

Vocês provavelmente sabem que muitas culturas do Oriente Próximo também contam histórias sobre um grande dilúvio. Além disso, há uma concordância entre essas histórias e o relato bíblico do dilúvio em muitos detalhes (a arca, o corvo etc.). No entanto, todos nós entendemos que o relato bíblico é muito diferente de outras lendas populares antigas. Existe uma maneira de provar isso analisando a estrutura literária da narrativa Bíblica Hebraica?

Hoje, vou mostrar a vocês uma figura  literária muito bonita, chamada paralelismo invertido; outra palavra para isso é chiasm. O termo chiasm vem da letra Grega chi, que se parece com «x». Um chiasm (ou quiasmo) é uma figura  literária na qual uma sequência de ideias é apresentada e então repetida  «na ordem inversa»: por exemplo, a estrutura ABBA se refere a duas ideias (A e B) repetidas na ordem inversa (B e A). Em alguns casos, um quiasmo inclui outra ideia no meio da repetição: ABXBA; então essa ideia no meio representa o ponto central do quiasmo —o ponto mais importante de toda a história, o ponto focal imperdível—.

Alguns quiasmos são bastante simples. Por exemplo, o fato de Benjamin Franklin dize: «Ao falhar em se preparar, você está se preparando para falhar», apresenta um quiasmo simple em que as palavras são repetidas na ordem inversa. Vocês podem encontrar muitos modelos quiásticos nas Escrituras —tanto na poesia quanto na prosa, em Hebraico e em Grego—.

Por que o quiasma era necessário? Vivemos em uma cultura visual hoje, mas os povos antigos viviam em uma cultura audível —e havia técnicas disponíveis para os Israelitas antigos— (não apenas para os Israelitas, também há quiasmas fora da língua Hebraica, mas é usado com frequência em Hebraico) que os ajudavam a se lembrar de uma determinada unidade do texto: onde a unidade começa e onde termina, e qual é a estrutura dela e qual é o seu centro. Nesse sentido, a história do dilúvio é um dos quiasmas mais longos e impressionantes da Torá: o quiasma do dilúvio começa em Gênesis 6:10 e termina em Gênesis 9:19 —e os paralelos são impressionantes—.

No entanto, para mim, pessoalmente, o detalhe mais marcante desse quiasma é o seu centro! Seu centro está em Gênesis 8:1: «Deus se lembrou de Noé»Como acabei de mencionar, o centro é o ponto mais importante de toda a história e, portanto, podemos ver claramente que o relato bíblico é muito mais do que uma memória pré-histórica ou uma variante de uma antiga lenda popular; antes de mais nada, esta é a história sobre Deus e o homem. O homem vivendo de acordo com a vontade de Deus, e Deus se lembrando do seu justo —este é o ponto central desta história—. Graças a esse quiasma e seu ponto focal, podemos destacar uma diferença fundamental entre a história bíblica e outras histórias de dilúvio do Oriente Próximo.

[1] Gênesis 6:14.

Os conhecimentos que vocês leem nestas páginas são típicos do que compartilhamos com nossos alunos durante as aulas DHB (Discovering the Hebrew Bible/Descobrindo a Bíblia Hebraica) ou WTP (Weekly Torah Portion/Porção Semanal da Torá). Se esses artigos despertam o seu interesse por descobrir os tesouros escondidos da Bíblia Hebraica ou por estudar em profundidade a Parashát Shavúa, juntamente com os conhecimentos do Novo Testamento,  ficaria feliz em fornecer mais informações (e também descontos de professor para os novos alunos) em relação aos cursos da eTeacher[1] (juliab@eteachergroup.com).

Se vocês gostam dos artigos deste blog, também podem gostar dos meus livros, podem obtê-los na minha página.

[1] No momento, oferecemos o curso WTP somente em Inglês, enquanto o curso DHB existe tanto em Espanhol quanto em Português.

 

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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