O Que Deu Errado? (2): Uma Grande Decepção

 

«Porque aos seus corações encobriste o entendimento… pelo que não os exaltarás».

Job 17:4

 

«Agora também muitas nações se ajuntaram contra você, que dizem: “Seja profanada, e vejam os nossos olhos o seu desejo sobre Sião”. Mas não sabem os pensamentos do Senhor, nem lhe entendem o plano…».

Miquéias 4:11-12

Muitos anos atrás, escrevi meu primeiro livro sobre o livro de Jó e os consoladores de Jó. Foi só depois de escrever este livro que percebi, para meu horror, que o sofrimento de Israel durante os primeiros séculos depois de Jesus realmente ajudou a Igreja a encontrar uma base teológica para seu ódio e desprezo. Não, é claro, o sofrimento não era o motivo desse ódio: como vimos da última vez, já no século II os Cristãos foram «enganados» ao pensar que deveriam tomar o lugar de Israel. No entanto, os sofrimentos de Israel foram muito «convenientes» para esta nova doutrina, nos problemas e miséria de Israel, o Cristianismo primitivo encontrou a evidência e a confirmação de que Israel foi rejeitado por Deus, e agora a Igreja, o «verdadeiro Israel» estaria no lugar do «povo escolhido».

Um dos grandes desejos e grandes conquistas de Satanás desde o início do Cristianismo foi plantar na mente dos Cristãos uma conexão entre a condição espiritual de Israel e o sofrimento que ele está passando —nós estamos passando—. Esta grande mentira tem que ser quebrada. O Salmo 69 diz: «Tu, ó Deus, tu conheces a minha estultice; e as minhas culpas não te são ocultas», mas dois versos depois diz: «Pois tenho suportado afrontas por amor de ti; e o rosto se me encobre de vexame».[1] Ninguém está dizendo, e muito menos eu, que Israel é uma nação devota: «as minhas culpas não te são ocultas», mas a conexão entre a condição espiritual de Israel e todo o sofrimento que ele passou, tem que ser quebrada.

Se vocês se lembram do livro de Jó, provavelmente perceberiam que ali temos o mesmo cenário: Satanás, que começou tentando (sem sucesso) caluniar Jó diante de Deus, acabou caluniando-o diante de seus amigos e desta vez teve muito sucesso. Ele os convenceu da conexão entre a condição espiritual de Jó e o sofrimento que ele estava passando. Quanto a Israel, Satanás sabe perfeitamente que não poderia caluniá-lo diante de Deus porque simplesmente não teria sucesso, então começou a trabalhar duro para caluniar Israel diante do povo. É bastante claro, ao olharmos através da história, que ele foi muito bem-sucedido nisso. Da última vez, falamos sobre Justino Mártir e seu famoso tratado, «Diálogo com Trifão» (e lembro que Justino viveu no século II, menos de um século depois de Jesus). Neste tratado, já vemos muito claramente, talvez pela primeira vez, o início da Teologia da Substituição: «Pois o verdadeiro Israel espiritual e os descendentes de Judá, Jacó, Isaque e Abraão somos nós que fomos conduzidos a Deus por meio deste Cristo crucificado». (Dial. 11). «Junto com Abraão nós receberemos herança por uma eternidade sem fim». (Dial.119) Tudo —a terra santa, a eternidade, o próprio Deus— agora é nosso, não de vocês. E o sofrimento de Israel nos dois primeiros séculos, os sofrimentos pelos quais os Cristãos não foram responsáveis, acabaram sendo muito «úteis» para essa doutrina: Justino declarou que todos os sofrimentos do povo Judeu eram o justo castigo de Deus pela morte de Cristo. Ao falar da expulsão do povo Judeu de Jerusalém, da devastação da terra e das cidades Judaicas incendiadas, ele não hesitou em chamar todas essas aflições de «justos castigos» dos assassinos. Houve intermináveis vozes na história do Cristianismo dizendo basicamente a mesma coisa: «Os eventos da justiça divina perseguem os Judeus pelos crimes que cometeram contra Cristo».[2]

A premissa era muito simples: se o povo de Israel está sofrendo tão horrivelmente, isso significa que o próprio Deus os puniu e rejeitou e, portanto, eles não merecem nada além do desprezo daqueles que legitimamente tomaram seu lugar. Assim, quanto mais terríveis eram os problemas e provações que cercavam Israel, mais justificada a Igreja se tornava aos seus próprios olhos. Não é por acaso que a ruptura da nova religião com suas raízes Judaicas se tornou mais distinta a cada nova angústia: particularmente em 70 d.C. com a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, e os anos de 132-135 d.C. com a Revolta de Bar-Kochba e as repressões Romanas que se seguiram. Toda vez que as coisas estavam indo mal para Israel, a Igreja celebrava. Nestes novos e crescentes problemas, repetidas vezes, o Cristianismo viu a confirmação de que Deus havia de fato rejeitado seu povo. Além disso, em algum momento, a Igreja não confiou em mais ninguém para ser o instrumento do «castigo de Deus», mas sempre se certificou de que o castigo certo e justo para os Judeus seria realizado: «perseguem a quem tu feriste».[3]

A história das relações Cristãs/Judaicas desde então é bem conhecida: esta é uma história de ódio, de antissemitismo, às vezes relativamente tranquila, às vezes extremamente sangrenta —do «toca-lhe em tudo quanto tem e [4] para toca-lhe nos ossos e na carne»[5] tem sido uma história de acusações sem fim. Se Deus ainda o ama, por que Ele não o ajuda? Onde está seu Deus? Ele não vem para ajudá-lo ou salvá-lo, portanto, Ele o rejeitou, e todos os seus sofrimentos são sua punição por seus pecados graves. Esta é mais ou menos a lógica destas acusações —a lógica do acusador—.

Isto te lembra alguma coisa? «Ele confia em Deus. Deixe que Ele o liberte». Eu escrevi um livro sobre isso, e o título do livro é: «If you are the Son of God, come down from the Cross» («Se você é o Filho de Deus, desça da Cruz»). Dois mil anos atrás, as pessoas diziam isso a Jesus, mas Ele não desceu da Cruz —exatamente porque Ele «era» o Filho de Deus—. Desde então, as pessoas têm dito isto a Israel —não exatamente com essas palavras, mas a mensagem é a mesma—. E para mim, é o grande enigma e o grande sucesso de Satanás, que os Cristãos, que deveriam saber melhor do que ninguém que «ser abandonados por Deus no sofrimento» nem sempre significa rejeição e punição, possam ser tão terrivelmente «enganados» quando se trata de Israel. Ninguém daqueles que acreditam na Bíblia argumentaria com a afirmação básica de que os «pensamentos de Deus não são nossos pensamentos», e nenhum crente maduro julgaria a medida do amor de Deus por alguém pelas circunstâncias pelas quais ele está passando. Mas quando se trata de Israel, a maioria dos Cristãos acredita sinceramente que este é o caso —que podemos julgar e tirar conclusões sobre o amor de Deus com base nas coisas que são vistas— e que, neste caso, seus pensamentos são exatamente como seus pensamentos. Eles tiram suas conclusões com base na história visível e estão convencidos de que isso é exatamente o que Deus pensa e sente sobre Israel. No entanto, seus pensamentos, de fato, não são nossos pensamentos, e aqueles que amam a Deus procuram conhecer seus pensamentos. O título dessas postagens é: «O que deu errado?» e sou extremamente grata pelos milhões de Cristãos que fazem esta pergunta hoje e que buscam sinceramente conhecer o coração de Deus e os pensamentos de Deus em relação a Israel.

[1] Salmos 69:5,7.

[2] Eusebius, Historia Ecclesiastica, HE Book 2, ch.6.

[3] Salmos 69:26.

[4] Jó 1:11.

[5] Jó 2:5.

 

Trechos do meu livro «If You Be Son of God…» estão incluídos neste artigo, então se vocês gostam do artigo, vocês também podem gostar do livro, vocês podem obtê-lo aqui. Além disso, gostaria de lembrá-los,  queridos amigosque oferecemos cursos maravilhosos e os convidamos a estudar juntos as Escrituras Hebraicas ou o Contexto Judaico do Novo Testamento. Como sempre, vocês podem entrar em contato comigo para obter mais informações.  

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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