Perdido Na Tradução: Bereshít

Em Israel, acabamos de celebrar Simját Torá  (literalmente A alegria da Torá), o feriado alegre que marca a conclusão do ciclo anual de leitura pública da Torá e o início de um novo ciclo. Sim, meus queridos amigos, o ano passou voando e estamos em Bereshít novamente! Eu sei que estávamos lendo o livro de Atos antes das férias, e vamos voltar a ele, no entanto, Gênesis é um livro tão incrível e há tantas nuances maravilhosas que estão completamente perdidas na tradução, que eu escolho começar novamente num novo ciclo da Porção da Torá, junto com todo o Ám Israél, o povo de Israel! Acho que vocês concordariam que a leitura correta deste livro dos princípios é crucial, porque nossa compreensão do desígnio de Deus para o homem depende disso! E embora esses capítulos sejam infinitos e haja muitos detalhes que só podem ser vistos no texto original em Hebraico, este ano decidi me concentrar na mensagem da palavra adám. Os erros de tradução que cercam essa palavra abundam nesses primeiros capítulos, embora seja precisamente nesses capítulos que o verdadeiro entendimento da mensagem de Deus e do desígnio de Deus é tão crucial. Eu gostaria de começar com uma visão incrível que encontrei em alguns comentários recentemente, que espero que lhes dê esperança nestes tempos estranhos e difíceis em que vivemos.

E a tarde e a manhã…

Todos nós estaríamos familiarizados com esse padrão repetitivo, essa estrutura fixa do primeiro capítulo do Gênesis. No final de cada dia da criação, temos esta frase: «Houve tarde e manhã…». Claro, esta frase ocorre em toda tradução, mas é preciso conhecer o Hebraico para reconhecer a ideia profunda que ela representa. A palavra Hebraica para «noite» é (ערבérev) e tem a mesma raiz que encontramos na palavra לערבב, que significa «misturar, juntar, confundir». Por outro lado, a palavra Hebraica para manhã é  (בוקרbóker) e compartilha uma raiz comum com várias palavras que têm a ver com «verificar, revisar e até controlar». Então, a frase «Houve tarde e manhã…» não é apenas separar um «dia» do outro (tudo o que entendemos por «dia») é também uma declaração profunda de que tudo o que parece caótico e confuso agora, será eventualmente trazido por Deus à clareza e à ordem. «Houve tarde e manhã…».

O nome «sangrento»

A palavra adám é um dos exemplos mais surpreendentes de coisas que só podem ser vistas em Hebraico. Há muito que podemos dizer sobre esta pequena palavra Hebraica de três letras, tantas coisas profundas que não são vistas na tradução e, portanto, são completamente perdidas pela vasta maioria dos leitores. Meu exemplo favorito, aquele com que eu costumava começar minha primeira lição, é: quando é a primeira vez que encontramos Adám na Bíblia?

Quando lemos nossa Bíblia em Português, não há Adám em Gênesis 1 —encontramos pela primeira vez Adám em Gênesis 2—. (A maioria das traduções o apresenta em Gênesis 2:20, embora algumas falem de Adám no versículo 19). Porém, em Hebraico vemos Adám em Gênesis 1:26, no famoso: «Façamos um homem». Porque?

A explicação, é claro, vem da língua Hebraica. Enquanto em Português, Adám é sempre um nome pessoal, em Hebraico também significa «humano» e pode ser usado tanto no sentido coletivo como no individual. Em Gênesis 1, adám é usado no sentido coletivo: não apenas o Adám individual, mas toda a humanidade foi criada no sexto dia. Em Gênesis 2 e 3, os usos genérico e pessoal são misturados. Essa interação entre o Adám individual e a «humanidade» coletiva, e a ambiguidade ao longo da narrativa, certamente adiciona uma nova dimensão e traz uma profundidade adicional aos eventos cruciais de Gênesis 3, algo que se perde completamente nas traduções.

Existem duas palavras diferentes que «saltam» para nós a partir deste nome. A primeira é dám —sangue—. Porque? Por que a palavra dám estaria dentro de Adám? Sabemos que o tema do sangue percorre toda a Torá —por todos os cinco livros de Moisés— mas começa aqui, dentro da palavra Adám! Claramente, este aspecto «sangrento» é um componente do nome de Adám e da identidade de Adám desde o início, e desde o início ele nos mostra que esta criatura é de fato carne e sangue!

Há outra palavra Hebraica que está ligada à palavra Hebraica original adámadamá —terra ou solo—. Não se pode realmente ver a conexão etimológica entre «homem» e «solo» na tradução Portuguesa, mas em Hebraico, certamente se destaca. Em Hebraico, quando vocês dizem Adám, vocês quase ouvem a palavra adamá neste nome. Na verdade, eles se correspondem e se correlacionam como os substantivos masculinos e femininos em Hebraico, o que significa que sua conexão é muito profunda e íntima. Por exemplo, em Gênesis 3, quando Deus pune Adám, é adamá que é amaldiçoado por causa dessa punição —outra prova desse vínculo interno essencial—. É muito claro que esse aspecto «terreno» também é um componente da identidade de Adám. De novo, por quê?

A explicação tradicional é assim: o homem é chamado de Adám porque «o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra» (adamá). No entanto, existem muitas interpretações diferentes e hoje eu quero compartilhar com vocês aquela que talvez não tenham ouvido antes. Esta interpretação pertence ao grande Rabino da cidade de Praga (século 16), Judah Loew ben Bezalel (amplamente conhecido pelos estudiosos do Judaísmo como «Maharal de Praga»). Ele estava se perguntando por que um homem era o único a ter o nome do solo afinal, os animais não foram também criados da terra? Aqui está sua resposta. Enquanto os animais foram criados «quase concluídos», tanto o homem (Adám) quanto a terra ou o solo (adamá), evoluem e se desenvolvem; ambos foram criados em um status básico e puro, e ambos requerem um trabalho longo e árduo a fim de atingir seu maior potencial e produzir frutos.

Vamos resumir o que vemos no nome do primeiro homem em Hebraico: Sem dúvida, os aspectos «sangrento» e «terrestre» formam os componentes originais, não apenas da identidade de Adám, mas da mensagem de Deus à humanidade: este homem de «carne e sangue» precisa ser desenvolvido depois que ele vem a este mundo, caso contrário, seus componentes «sangrento» e «terrestre» prevalecem. Vemos isso acontecendo quase imediatamente, em Gênesis 3 e depois em Gênesis 4 , onde ambas as palavras formam um dos versículos mais trágicos de toda a Bíblia: «A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim» (קול דמי אחיך צעקים אלי מן האדמה). E, falando sobre o desenvolvimento do homem, talvez este seja um bom momento para citar a resposta que foi dada por um sábio Judeu a um estudante que fez a pergunta tradicional: «A quem Deus está falando em Gênesis 1:26 quando está dizendo: “naasé adám”“façamos o homem”?».

A resposta foi: «Deus está falando com você, comigo e com todos. Desde o início de sua Palavra, Ele está dizendo a todos: “Se você escolher, se você me permitir entrar em seu coração, juntos —você e eu— através desta Palavra, naasé adám, faremos um homem (humano) de você!”».

Uma criatura maravilhosa

Abordemos ainda outro aspecto «perdido na tradução»: a questão do masculino e do feminino. Quem Deus criou em Gênesis 1? Todos conhecem a história de Gênesis 2: primeiro, Deus forma Adám do pó e o coloca no Jardim do Éden, e somente no final deste capítulo uma mulher é criada a partir de uma das costelas de Adám. Este é o entendimento tradicional: a criação do homem ocorre primeiro, enquanto a criação da mulher ocorre algum tempo depois, depois que todos os animais são criados. No entanto, alguns comentaristas Judeus leem esta história de uma maneira muito diferente!

Gênesis 1:26 primeiro se refere a adão no singular, mas depois diz que «eles governarão». Quem são «eles?».Encontramos uma resposta no versículo 27, onde a natureza desta criação é esclarecida: «homem e mulher os criou».[1] A verdade é que «façamos o homem»[2] da tradução Portuguesa é uma tradução muito infeliz da palavra Hebraica adám: esta palavra significa simplesmente «humano» e não denota necessariamente apenas um homem. Vemos isso muito claramente em Gênesis 5: «Ele os criou homem e mulher, e os abençoou e os chamou de adãm».[3]

Então, foi um ou dois? Uma série de passagens rabínicas afirmam que o primeiro ser humano era na verdade composto de ambos os sexos. Assim, Midrásh Bereshít Rabá diz: «O homem e a mulher eram originalmente indivisos, isto é, Adám foi criado a princípio… hermafrodita». No Midrásh Leviticus Rabá lemos: «No momento em que o Santo, Bendito seja Ele, criou o Homem, Ele o criou como um Andrógino». De acordo com este conceito, Deus cria um ser humano que é tanto homem quanto mulher.

Em Gênesis 2 , Deus está olhando para esta criatura de dois gêneros e pela primeira vez em todo o seu trabalho criativo Ele diz: ló tóv —«não é bom»—.[4] Esta não era claramente a maneira ideal de criar um casal homem/mulher, então Deus os dividiu em duas pessoas diferentes. É por isso que, quando um homem e uma mulher se casam, eles se tornam «um» novamente: eles retornam ao desígnio original de Deus antes que o  homem e a mulher se separassem!

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[1] Gênesis 1:27.

[2] Gênesis 1:26, adám aqui é geralmente traduzido como «homem».

[3] Gênesis 5:2, adám aqui é geralmente traduzido como «humanidade».

[4] Gênesis 2:18.

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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