O Messias E O Filho Do Homem Nos Evangelhos (iii): Apocalipses

Os meus leitores provavelmente estão cientes da diferença entre o termo משיח  (Mashiach/Messias), que é usado na Bíblia Hebraica em referência a um verdadeiro governante rei ou sacerdote, e o conceito de “messianismo”, que originalmente deriva desse substantivo, mas refere-se a imagens, símbolos ou conceitos de um salvador escatológico. É um fato bem conhecido que o próprio título “Mashiach”, e o costume de “ungir”, originou-se no mundo da monarquia Israelita: no contexto original, apenas uma das trinta e nove ocorrências da palavra “mashiach” (משיח) no cânone Hebraico refere-se a um salvador escatológico esperado. Se perguntarmos como essa transformação aconteceu, uma resposta seria que, principalmente, ocorreu através do gênero do “apocalipse“. Os apocalipses se tornam os principais transportadores de idéias escatológicas e conceitos messiânicos no período do Segundo Templo. Nos escritos apocalípticos, os textos bíblicos originais sobre ‘ungidos’ foram colocados em um quadro escatológico e, portanto, transformados em textos messiânicos escatológicos. Consequentemente, esse gênero tornou-se o centro de todo o processo de repensar e reinterpretar a Bíblia no período do Segundo Templo.

 

À frente desse movimento apocalíptico, está o Apocalipse bíblico de Daniel, com a famosa visão de Daniel de “Um como um Filho do Homem” no capítulo 7. Este capítulo descreve uma visão em que o profeta vê quatro grandes bestas saindo do mar, cada uma diferente das outras. O ‘Ancião de Dias‘ aparece nesta visão em toda a sua glória. Então, depois que a quarta besta é destruída, aparece na cena ‘Um como um Filho do homem‘ que é transportado nas nuvens para o Conselho celestial de Deus, onde ele permanece na presença divina. Lemos um belo relato desta audiência real: eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha coma as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-se ao Ancião de dias… Foi-lhe dado domínio e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído…[1] 

 

O Apocalipse de Daniel claramente marca o fim do período dirigido biblicamente e, ao mesmo tempo, está no início de um novo período apocalíptico, com uma visão totalmente nova da história e um novo paradigma messiânico. “‘Um como um Filho do Homem’ que vem com as nuvens do céu em Daniel 7:13, deu origem a um tipo diferente de expectativa messiânica, que enfatizou o caráter celestial e transcendente da figura salvadora”.[2] Nos séculos seguintes, esse tipo de libertador transcendente desempenhará um papel cada vez mais importante na escatologia Judaica e a misteriosa figura chamada ‘Filho do Homem’ aparecerá em diferentes escritos apocalípticos.

 

A primeira evidência Judaica para a interpretação e reutilização de Daniel 7: 13-14 é encontrada nas Similitudes de Enoque, o segundo sub livro do Primeiro Livro de Enoque (I Enoque 37-71).[3] “Este livro nos fornece a nossa evidência mais explícita de que o Filho do Homem como um Redentor divino-humano surgiu no tempo de Jesus da leitura do livro de Daniel”.[4] Em vários lugares ao longo das Similitudes, é usada a expressão ‘Filho do Homem’ ou simplesmente ‘Homem’ (46:1-6; 48:2-7; 62:5-9,14; 63:11; 69:26-29; 70:1; 71:17). As alusões mais claras estão em 1 Enoque 46:1: “Naquele lugar, vi Aquele a quem pertence o tempo antes do tempo. E sua cabeça era branca como lã, e havia com ele outro indivíduo, cujo rosto era semelhante ao de um ser humano”, e em I Enoque 47:3: “Naqueles dias, eu o vi –o Anterior ao Tempo–, enquanto ele estava sentado no trono da sua glória, e os livros dos vivos estavam abertos diante dele”. Enoque, então, pergunta a seu guia angélico “sobre aquele que nasceu dos seres humanos”: “Quem é esse, e de onde é aquele que está indo como o original  do Antes do Tempo?” O anjo responde: “Este é o Filho do Homem, a quem pertence a justiça e com quem habita a justiça”. A figura do Filho do Homem é apresentada aqui como um ser celestial. Embora ele pareça humano, ele é um angélico sobrenatural que está em uma relação muito especial com o próprio Deus. O Senhor dos Espíritos o escolheu (46:3; 48:6) e o levou a realizar em seu nome, uma obra que ainda não foi revelada. A escolha dele por Deus foi feita “antes da criação do mundo e para sempre”; “Seu nome foi nomeado antes do Senhor dos Espíritos”[5] antes que o sol e as estrelas fossem feitos (compare com a tradição rabínica posterior, onde o nome do messias está listado entre as coisas que precederam a criação do mundo); nos propósitos de Deus, ele estava encoberto, oculto desde o início e “a sua glória é para todo o sempre”. Em geral, o livro fala sobre um Filho do Homem celestial e mostra pouca conexão com a idéia de messias.[6]

Daniel 7 também está reproduzido em 4 Esdras , um apocalipse Judaico do final do 1 o século EC. “…E eu olhei, e eis que esse vento fez algo como a figura de um homem que saiu do coração do mar. E eu olhei, e eis que aquele homem voou com as nuvens do céu…”[7] “As nuvens do céu” é uma clara alusão a Daniel 7. Na interpretação, o ‘homem’ da visão é identificado como “ele a quem o Altíssimo guardou durante muito tempo, que ele mesmo entregará sua criação…”[8] Curiosamente, neste texto, escrito aproximadamente ao mesmo tempo que o Evangelho de Marcos, o Homem da visão já é identificado com o Messias: “Eis que, estão chegando os dias quando o Altíssimo entregará os que habitam sobre a terra… então meu filho será revelado, a quem você viu como um homem vindo do mar… Mas ele vai ficar no topo do Monte Sião… E ele, meu Filho, vai reprovar as Nações reunidas  por sua impiedade… e ele irá destruí-las… Portanto, quando ele destrói a multidão das nações que estão reunidas, ele defenderá as pessoas que permanecem…”[9]

Agora, depois desta breve revisão, podemos retornar aos Evangelhos e enfrentar nossa questão principal: Por que Jesus chamou a Si mesmo Filho do Homem, e não  Messias? Vamos tentar responder a esta pergunta em nossa próxima postagem.

[1] Daniel 7:13,14

[2] John J. Collins  The Scepter  and the Star: the Messiah of the Dead Sea Scrolls and other ancient literature (The  Anchor Bible reference library, 1995), p.175

[3] 1 Enoque é uma coleção de textos apocalípticos Judaicos que datam dos últimos três séculos antes da Era Comum.

[4]Daniel Boyarin, The Jewish Gospels: the story of the Jewish Christ, The new Press, NY, 2012,

[5] 1 Enoque 48:3-6

[6] Há que notar que aqui ele também é chamado duas vezes de Messias (48:10 e 52:4)

[7] 4 Esdras 13:3

[8] 4 Esdras 13:26

[9] 4 Esdras 13:27,29,35-37,49-50.

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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  1. Joel Silva

    No Evangelho de João, cap. 4, verso 26, o Senhor Jesus, em diálogo com a samaritana, declara-se, com todas as letras, Messias. Eis a conversa:

    “João 4:25 – A mulher disse-lhe: Eu sei que o Messias (que se chama o Cristo) vem; quando ele vier, nos anunciará tudo.
    João 4:26 – Jesus disse-lhe: Eu o sou, eu que falo contigo.”