Cuidado com o traje real!
A história de José e seus irmãos constitui a última parte do livro de Gênesis. Esta história começa em nossa nova porção da Torá, Vayeshév. Ela inicia com a palavra Vayeshév (daí o nome da porção), geralmente traduzida como «estabeleceu» ou «habitou»: «Habitou Jacó na terra das peregrinações de seu pai, na terra de Canaã». Já escrevi sobre isso, mas gostaria de enfatizar mais uma vez: em Hebraico, o contraste entre as palavras que descrevem Jacó e descrevem «seu pai» é impressionante! A palavra (יָשַב; yasháv) significa algo sedentário, permanente, estável; é entendida como o oposto de «vagar». Na verdade, temos uma declaração aqui: Jacó está firmemente estabelecido na terra onde seu pai (avô, na verdade) era apenas um estranho. Jacó pertence a esta terra!
O segundo versículo —«esta é a história de Jacó»— na verdade, inicia a história de José. No versículo 3, lemos que «Israel amava José mais do que a todos os seus filhos» e expressou abertamente seu favoritismo dando a José uma túnica muito especial. Em Hebraico, esta túnica é chamada (כְּתֹנֶת פַּסִּים; ketónet pasím). O conceito tradicional de traduções e folclore é que se tratava de uma espécie de vestimenta externa multicolorida. No entanto, o Hebraico permite diferentes interpretações dessas palavras. Na verdade, a palavra pasím aqui pode ser traduzida como «colorida», «bordada» ou «listrada», mas também pode denotar uma vestimenta longa, descendo até as «palmas» das mãos e dos pés, ou o material de que o casaco era feito (lã fina ou seda). Portanto, ketónet pasím pode ser traduzido como «uma túnica de mangas compridas», «um casaco de muitas cores», «um casaco que vai até os pés», «uma túnica ornamentada», «uma túnica de seda» ou «capa de lã fina».
Surpreendentemente, em todo o Tanáj (Antigo Testamento), as mesmas palavras ocorrem apenas mais uma vez —na história de Amnom e Tamar—. Vocês não as veem na tradução, porque muitas vezes são traduzidas como «manto de mangas compridas», mas em Hebraico, é exatamente a mesma expressão usada para o manto de José. Lá, este manto definitivamente significa uma distinção especial: «assim se vestiam as donzelas filhas do rei».[1] Este é apenas um exemplo de como é importante o entendimento das Escrituras Hebraicas. Não podemos ver nas traduções, que a vestimenta de Tamar era a mesma que a de José. No entanto, é somente graças a esse versículo que podemos entender que a túnica de José era muito especial: não apenas uma túnica de várias cores, mas muito provavelmente o tipo de manto usado pela realeza.
É interessante que, em ambos os casos, esse manto foi um prenúncio da tragédia que se aproxima. As duas histórias são muito trágicas: José foi atacado e vendido, Tamar foi atacada e estuprada; os irmãos despojaram José de sua túnica, Tamar rasgou sua túnica! É como se as Escrituras dissessem: cuidado com os trajes reais!
José e seu pai
Muitas perguntas surgem quando lemos este capítulo dramático: Gênesis 37. Por exemplo, sempre me perguntei por que Jacó enviou José para seus irmãos. Ele não estava ciente do fato de que os irmãos odiavam José? (isso é exatamente o que a Torá diz aqui). Eu acredito que sim, então por que ele manda seu filho amado (muito bem vestido para esta longa caminhada) para os irmãos invejosos e odiosos?
Provavelmente, anos depois, José fez as mesmas perguntas. Quando, depois de todo o sofrimento e provações de José, finalmente o vemos sendo bem-sucedido e influente no Egito, somos surpreendidos por um detalhe muito interessante nesta narrativa. Quando seu primeiro filho nasceu no Egito, José o chamou de Manassés: «Deus me fez esquecer (nashaní) de todos os meus trabalhos, e de toda a casa de meu pai». Esquecer a casa de seu pai? Seu pai não o amava? José não amava seu pai? Por que ele queria esquecê-lo?
Em primeiro lugar, devemos lembrar que José não sabia o que nós, leitores, sabemos. José não sabia que seus irmãos haviam enganado seu pai e que Jacó pensava que José estava morto. Ele provavelmente estava se perguntando, especialmente durante seus primeiros anos de escravidão: «Por que meu pai não procura por mim?». O Egito é tão perto de Canaã que, sem dúvida, José esperava que seu pai fosse procurá-lo, mas como todos sabemos, isso não aconteceu. Portanto, em algum ponto José pode ter decidido que Jacó estava envolvido na trama, afinal, foi seu pai quem o enviou aos irmãos. José sabia que seu pai o amava, mas ele também conhecia as histórias dos Patriarcas: Abraão amava Ismael, mas Deus escolheu Isaque; Isaque amava Esaú, mas Deus escolheu Jacó. José sabia que se a vontade de Deus para ele era ser banido de sua família, seu pai provavelmente aceitaria e obedeceria a esta vontade.
Só quando os irmãos chegaram, José percebeu que Jacó nada sabia sobre o crime. É por isso que depois pergunta: «vive ainda meu pai»[2] (traduzido como «meu pai está bem?» na tradução): ele sabe que Jacó não tem muito tempo e está ansioso para consertar seu erro, reconciliar-se, talvez até mesmo pedir perdão ao pai.
Os Ismaelitas
Há mais um detalhe neste capítulo que eu simplesmente não posso ignorar, talvez porque para mim, vivendo no Israel de hoje dilacerado pelo conflito, este é o tópico de extrema importância. Lemos que, após a sugestão de Judá de vender José, «os irmãos o alçaram e o tiraram da cisterna, e o venderam por vinte siclos de prata aos Ismaelitas».[3] Onde eles encontraram esses Ismaelitas? Lemos alguns versículos antes: «Olharam e viram que uma caravana de Ismaelitas vinha de Gileade com seus camelos».[4]
Pensem nisso: a história de José acontece apenas duas gerações depois de Abraão (José é neto de Isaque e bisneto de Abraão), mas já os Ismaelitas que passam pela companhia dos netos de Isaque parecem completamente estranhos a todos eles. Quando os irmãos veem uma caravana de mercadores de passagem, eles os identificam como «Ismaelitas» na verdade da mesma forma distanciada com que reconheceriam qualquer outra tribo ou nacionalidade: como estrangeiros e estranhos que nada tinham a ver com eles. Não é impressionante? Apenas duas gerações depois de Isaque e Ismael, e não há indícios de laços familiares, nenhum traço de qualquer tipo de parentesco. Nada! No período de vida de duas gerações, as famílias de Isaque e Ismael tornaram-se completamente distantes uma da outra! Um pensamento muito desanimador!
E, no entanto, também existe um pensamento encorajador que podemos encontrar aqui! Todos nós sabemos perfeitamente bem que era plano de Deus desde o início levar José, e depois todo o Israel, para o Egito: no entanto, este plano não teria sido cumprido se não tivesse «acontecido» de aqueles Ismaelitas passarem: «José foi levado ao Egito, e Potifár, oficial de Faraó, comandante da guarda, Egípcio, comprou-o dos Ismaelitas que o tinham levado para lá. O Senhor era com José».[5]
Vocês acham que foi um mero acidente que aqueles Ismaelitas passaram lá? Não há acidentes na Palavra de Deus: se ela diz que foram os Ismaelitas que trouxeram José ao Egito, então era importante para o Senhor que eles estivessem lá e que nós soubéssemos disso. José teve que chegar ao Egito —esse era o plano de Deus para começar— mas esse plano foi implementado por meio dos Ismaelitas. Vocês podem imaginar? Para o evento mais magnífico, mais significativo e mais marcante da história de Israel —o Êxodo— Deus usou os Ismaelitas! Os caminhos de Isaque e Ismael estão interligados, e esta é a lição animadora que podemos aprender com essa história.
[1] 2 Samuel 13:18.
[2] Gênesis 45:3.
[3] Gênesis 37:28.
[4] Gênesis 37:25.
[5] Gênesis 39:1,2.
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