Os leitores que acompanham este blog há algum tempo sabem que eu amo séries. Hoje iniciaremos uma nova série, comentando a última parte do livro do Gênesis: a saga de José. Para ser honesta, eu mesmo estou muito surpresa por nunca ter escrito nada sobre esta história nestas páginas, uma vez que esta é, sem dúvida, uma das minhas partes favoritas das Escrituras. De qualquer forma, começarei essa série hoje. Originalmente, planejava escrever apenas quatro ou cinco posts nesta série; no entanto, há tantos detalhes incríveis e nuances deliciosas na história de José —e eu realmente quero compartilhar com vocês todos esses detalhes e nuances—que tenho a sensação de que podemos prosseguir mais devagar do que planejei e precisaremos de mais artigos. Veremos, mas por agora, vamos lá, e eu realmente espero que vocês gostem desta nova série e descubram algumas novas perspectivas nesta história bem conhecida!
O início
«A Saga de José» começa em Gênesis 37:1 com um versículo muito interessante, que não deve ser esquecido:«Habitou Jacó na terra das peregrinações de seu pai, na terra de Canaã». Em Hebraico, o contraste entre a habitação de Jacó (וַיֵּ֣שֶׁב) na terra e as peregrinações de seu pai[1] na mesma terra (מְגוּרֵ֣י אָבִ֑יו) é impressionante e é claramente enfatizado: Jacó já está firmemente estabelecido na mesma terra onde Abraão era apenas um visitante.
Então, no próximo versículo deste capítulo, lemos a frase, ou melhor, o início da frase que encontramos muitas vezes antes: «Esta é a história de Jacó» ( Éle toledót Yaakóv). Vocês provavelmente sabem que o mesmo começo ocorre muitas vezes na Torá (na verdade, doze vezes) e pela primeira vez, o encontramos no segundo capítulo do livro de Gênesis, onde começa o segundo relato da criação. Aqui ele forma uma ponte literária peculiar, conectando e mantendo juntos dois relatos da criação: não leríamos Gênesis 2 sem primeiro ler Gênesis 1, leríamos? Nesse sentido, este segundo versículo da saga de José também é como uma ponte conectando a história de Jacó com a história de José: logo após essas palavras, a narrativa passa para José, mas vocês tem que ler as duas partes —as histórias de Jacó e José— a fim de compreendê-las totalmente.
A propósito, encontramos quase o mesmo início no Novo Testamento. Lemos nas palavras iniciais do Evangelho de Mateus: «O livro da genealogia (de Jesus Cristo»). Se alguém souber quantas vezes essas palavras serviram como ponte literária na Torá, perceberá imediatamente que aqui também servem como ponte ligando o Novo Testamento ao Antigo Testamento. Nesse sentido, as palavras «Antigo Testamento» são na verdade muito enganosas: pode-se pensar que é desnecessário ler o Antigo Testamento para conhecer e compreender o Novo Testamento. No entanto, nossa ponte mostra que eles se relacionam da mesma forma que as duas histórias da criação se relacionam, ou como a história de José se relaciona com a história de Jacó: presumivelmente, não se leria a segunda parte sem ler a primeira.
Como acabei de mencionar, logo após essas palavras, a narrativa passa para José. No mesmo versículo, a Escritura nos diz que «Tendo José dezessete anos, apascentava os rebanhos com seus irmãos». Ele estava com os filhos de Bila e os filhos de Zilpa e trouxe «más notícias deles a seu pai». Os «relatórios ruins» que José trouxe a seu pai causaram muita divisão nas opiniões dos comentaristas Judeus. Havia coisas ruins que realmente precisavam ser relatadas ou José estava apenas contando sobre seus irmãos?
A beleza da Bíblia, que nunca tenta embelezar as pessoas que descreve, continua me surpreendendo. As histórias de famílias aqui retratadas muitas vezes chocam os leitores com os detalhes que a maioria das famílias tentaria arduamente manter em sigilo. O favoritismo dos pais é um bom exemplo. Hoje é considerado um dos pecados parentais mais graves, mas a Torá não hesita em nos dizer que Jacó amava José mais do que amava seus irmãos: «Ora Israel amava mais a José que a todos os seus filhos, porque era filho da sua velhice».
Podemos nos perguntar por que a Torá não menciona a explicação óbvia: que José era filho de Raquel, o grande amor de Jacó. No entanto, se percebermos a idade de Jacó quando José nasceu, entenderemos que, de fato, «a velhice de Jacó» por si só foi suficiente para explicar os sentimentos especiais de Jacó por José. Para descobrir isso, precisaremos de alguns cálculos com base nos eventos posteriores desta história. Lemos que Jacó tinha 130 anos quando veio ao Egito.[3] Quantos anos José tinha nessa época? A Torá diz que José tinha 30 anos «quando se apresentou ao Faraó»[4] e que restaram 5 anos de fome (se passaram 7 anos de abundância) quando José chamou Jacó ao Egito.[5] Então, José tinha cerca de 30 + 7 + (7-5) = 39 anos quando Jacó veio ao Egito aos 130. Isso significa que Jacó tinha cerca de 91 anos quando José nasceu, na verdade, um «filho da sua velhice».[6]
Jacó não escondeu de forma alguma o seu favoritismo: ele deu a José uma túnica muito especial. Em Hebraico, é chamada (כְּתֹנֶת פַּסִּים ; ketonét pasím) e embora as traduções tradicionalmente a traduzam como «a túnica de muitas cores», o significado dessas palavras em Hebraico de forma alguma não é claro. Na próxima vez, discutiremos em detalhes esta túnica e todas as maneiras possíveis pelas quais esta ketonét pasím pode ser traduzida do Hebraico e, ainda mais importante, descobriremos quem mais na Bíblia estava usando uma ketonét pasím. Ainda estamos nos primeiros versículos de Gênesis 37 (não avançamos muito, avançamos?) mas, esperamos que, da próxima vez, chegaremos ao crime dos irmãos e à venda de José. Há muitos detalhes incríveis nesta história, então, fiquem atentos!
[1] Provavelmente, o avô de Jacó, Abraão, é referido aqui.
[2] Pirkei d’Rabbeinu HaKadosh.
[3] Gênesis 47:9.
[4] Gênesis 41:46.
[5] Gênesis 45:6,11.
[6] Gênesis 37:3.
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