De Jerusalém A Roma: Concílio De Jerusalém (2)

Da última vez vimos que, como dirigente, Tiago resumiu a discussão no Conselho de Jerusalém. Tiago concluiu a reunião com o takkaná (devo lembrá-los que takkaná é um regulamento emitido por uma autoridade rabínica que revisa uma ordenança que não satisfaz mais os requisitos dos tempos ou circunstâncias). Tiago, de fato, emitiu tal takkaná, e hoje vamos discutir o conteúdo desta decisão.

Leis de Noé?

«Pelo que julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os Gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolosbem como das relações  sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue».[1]

Em primeiro lugar, o uso do plural por Tiago, «nós»: «não devemos perturbar» parece representar a liderança de Jerusalém como um todo e seu acordo sobre esta questão. Também é importante entender que, ao falar em «perturbar» ou «sobrecarregar» os crentes Gentios, Tiago fala sobre a maioria dos Gentios que se voltam para o Deus de Israel por meio de Jesus —a comunidade Judaica não exigirá deles nada além destes regulamentos—. Isso não significa, no entanto, que se um crente Gentio quiser tomar sobre si observâncias adicionais, não lhe será permitido. A visão rabínica sobre este assunto é muito clara: «Um Noé que deseja cumprir qualquer mandamento da Lei com o objetivo de receber uma recompensa não deve ser impedido de realizá-lo adequadamente».[2]

Não tenho dúvidas de que todos vocês ouviram muitos comentários sobre as decisões emitidas pelo Conselho de Jerusalém. Ainda assim, apenas algumas palavras de esclarecimento sobre cada uma:

  • Abster-se de coisas contaminadas por ídolos significa: abster-se de comida (especialmente carne) sacrificada a ídolos.
  • Abster-se da imoralidade sexual: enquanto no mundo pagão isso era considerado muito levianamente, para o Judeu crente na Torá, era uma clara abominação.
  • Abster-se do que é estrangulado, significa: abster-se da carne de animais não abatidos de forma a permitir que o sangue flua.
  • Abster-se de sangue: pode ser entendido literalmente, significando: «abster-se de comer carne com sangue», ou metaforicamente, referindo-se ao assassinato.

Normalmente, essas quatro proibições são vistas como uma versão das leis de Noé, listadas pelo Talmúd como as leis que Deus exigiu de toda a humanidade desde os dias de Noé, antes mesmo de «Judeu» e «Gentio» serem definidos. «Nossos rabinos ensinaram: “Os filhos de Noé receberam sete mandamentos: praticar a justiça e se abster de blasfêmia, idolatria, adultério, derramamento de sangue, roubo e comer carne arrancada de um animal vivo”».[3] O Concílio de Jerusalém pode ter baseado suas proibições nessa tradição, embora não encontremos nada sobre «praticar a justiça» ou «abster-se de roubo» entre seus requisitos. Por outro lado, «o Concílio pode ter especificado apenas requisitos mínimos, com a expectativa de que outros atributos morais serão adquiridos posteriormente, possivelmente como resultado de Gentios frequentando o serviço na sinagoga e aprendendo ali a tradição moral Judaica».[4] Isso explicaria a seguinte menção à leitura da Torá nas sinagogas: «Pois Moisés teve ao longo de muitas gerações aqueles que o pregam em todas as cidades, sendo lido nas sinagogas cada Shabát». Pode ser que Tiago esteja realmente dizendo aqui, vamos deixar os Gentios se tornarem parte da comunidade Messiânica sem fazer proselitismo formal, porque não importa onde eles vivam, em cada cidade, eles podem frequentar uma sinagoga local e ouvir o que a Torá ensina sobre um vida consagrada.

A Torá como a única fonte autorizada

Se nos lembrarmos, no entanto, que as leis de Noé foram formuladas e escritas muito depois do século I, acharíamos muito improvável que Tiago se referisse a estas leis aqui. Então, de onde é que ele origina seus regulamentos?

Gostaria de lembrá-los de algo que mencionei da última vez: a ausência de qualquer referência à Torá no discurso de Tiago é um tanto impressionante, e até fez alguns estudiosos sugerirem que o que temos em Atos 15 é apenas um fragmento de um discurso mais longo. Existe e provavelmente havia naquela época também uma regra hermenêutica clara que afirma que a Torá é a única fonte autorizada e que os Profetas não foram autorizados a introduzir novos regulamentos. Nesse sentido, os regulamentos de Tiago devem necessariamente se basear nas alusões derivadas da Torá. Podemos encontrar algo na Torá que se relacione com os regulamentos do Conselho de Jerusalém?

Na verdade, podemos. De fato, por trás da lista de Atos 15, muitos estudiosos veem a influência de Levítico 17-18. Esses capítulos são sobre santidade no acampamento e na terra de Israel, e contêm vários regulamentos que também são obrigatórios para os estrangeiros «vivendo entre vocês» em Israel. Eles enfatizam a santidade do sangue, abstendo-se da idolatria e abstendo-se de várias formas de imoralidade sexual, incluindo relacionamentos incestuosos. Podemos resumir esses capítulos nas quatro leis principais:

  1. Não sacrifiquem a demônios/deuses falsos;
  2. Não consumam sangue, pois a vida está no sangue;
  3. Não comam algo que morreu ou foi dilacerado por animais;
  4. Não se envolvam em imoralidade sexual.

 

Isso soa familiar? Acabamos de ler o discurso de Tiago onde ele decidiu que os Gentios deveriam se abster de coisas contaminadas por ídolos, de imoralidade sexual, de coisas estranguladas e de sangue. As duas listas, de Atos 15 e de Levítico 17-18, soam quase idênticas.

«Podemos questionar por que estas leis específicas foram escolhidas, e outras mais óbvias, como os Dez Mandamentos, nem sequer são mencionadas. A razão fica clara quando lemos Levítico 17 e 18 claramente essas injunções foram tiradas diretamente daqui e provavelmente foram projetadas para remover qualquer influência demoníaca da vida dos Gentios que entram na assembleia de Israel».[5] Levítico considera estas coisas como males dos Gentios, que contaminariam os Israelitas. Ao observar estes quatro mandamentos, os Gentios poderiam ser aceitos em Israel e poderiam participar dos cultos da sinagoga no Shabát junto com os Judeus. Isso explicaria o comentário final de Tiago referindo-se à leitura da Torá nas sinagogas: «Porque Moisés teve ao longo de muitas gerações aqueles que o pregavam em todas as cidades, sendo lido nas sinagogas cada Shabát»Isto se refere à possibilidade de os Gentios aprenderem a lei uma vez que são admitidos em uma sinagoga. Também pode ser visto como uma confirmação adicional de que os regulamentos são de fato extraídos da Torá, especialmente se levarmos em conta que o capítulo seguinte de Levítico, Levítico 19, abre a porção da Torá Kedoshím: «Povo Santo» ( Levítico 19:1 – 20:27). A porção da Torá, Kedoshím, em muitos aspectos se assemelha (e pode até ter sido a fonte do) Sermão da Montanha de Jesus. Esta porção começa com as palavras: «Sereis santos, porque eu, o Senhor, Deus, sou santo», e nesta Porção encontramos as famosas palavras que, não apenas Jesus, mas muitos sábios Judeus antes e depois dele, consideraram o cerne de toda a Torá: «Ame o seu próximo como a si mesmo»Tiago aponta a possibilidade de os Gentios ouvirem essas palavras da Torá e aprenderem a ser santos.

[1] Atos 15:19,20.

[2] Hillary Le Cornu, Joseph Shulam, The Jewish Roots of Acts, Vol.I, p. 835.

[3] Sanhedrin 56a.

[4] David H.  Stern, Jewish New Testament Commentary, p.  278.

[5] Dorothy Healy, https://www.ourlivingtorah.com/_files/ugd/ed5d00_6806a953f7284220941f51a7a3273104.pdf

 

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About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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