“…semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas”.
Neste artigo, vamos discutir alguns títulos de Jesus que vêm do Tanach (Bíblia Hebraica). Como sempre, quero que vocês vejam a continuidade entre os Testamentos: até mesmo o que parece ser um tema inteiramente do Novo Testamento pode, de fato, estar enraizado no Tanach. Já vimos isso com o tema “a outra face”. Hoje, vamos discutir alguns exemplos adicionais.
QUEM É ESSE FILHO DO HOMEM?
“mas vós, perguntou ele, “quem dizeis que eu sou?”
Então falou Pedro, e disse: “És o Cristo de Deus”.
Ele, porém, advertindo-os, mandou que a ninguém declarassem tal coisa, dizendo: “É necessário que o Filho do homem sofra muitas coisas…”[1]
Nós já aprendemos que Jesus continuamente desencorajou o uso do título ‘Messias’ ao longo de todo o seu ministério terreno. Em vez disso, Ele repetidamente usou a expressão “Filho do Homem” com referência a si mesmo. Não seria lógico supor que Ele preferisse expressar Sua missão em termos de “Filho do Homem”, em vez de “Messias de Israel”? Por quê?
A maioria dos Cristãos de hoje acredita que o título Filho do Homem reflete a natureza humana de Jesus: Ele não é apenas divino, mas também é completamente humano, Filho do Homem. De fato, o oposto é verdadeiro: no período intertestamentário, o misterioso “um como o Filho do homem” do livro de Daniel —“eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem”—[2] enfatizou claramente o caráter celestial, eterno e universal do Salvador.
No primeiro século d.C., esses dois conjuntos de ideias passaram a representar duas correntes separadas de esperança “messiânica”: um Salvador deste mundo, nacional e político, versus um Salvador transcendental, eterno e universal. Eles foram designados por diferentes nomes —‘Messias’ e ‘Filho do Homem’— e articularam a visão de mundo e as expectativas de diferentes grupos de Judeus. Em alguns escritos deste período, os conceitos de Filho do Homem e Messias estão claramente distintos, enquanto em outros eles estão reunidos, mas em nenhum lugar eles estão completamente fundidos. Portanto, se realmente queremos entender o ministério e a missão de Jesus em sua totalidade, precisamos entender que Ele veio como um Filho do Homem transcendental, eterno e universal, e “nenhum termo foi mais adequado para esconder, ainda ao mesmo tempo, revelar àqueles que tinham ouvidos para ouvir, a real identidade do Filho do Homem”.[3]
SUMO SACERDOTE PARA SEMPRE
Na Epístola aos Hebreus, lemos: “E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se levanta outro sacerdote… segundo a ordem de Melquisedeque”.[4] Por quê? Qual é a conexão entre Melquisedeque da Bíblia Hebraica e Melquisedeque do Novo Testamento?
Em Gênesis 14, Melquisedeque encontra Abraão depois que ele voltou de sua vitória sobre Quedorlaomer. Melquisedeque traz pão e vinho para Abraão, o abençoa e elogia El Elyon, o criador do céu e da terra, que é responsável pela vitória de Abraão. Em Gênesis 14, Melquisedeque é referido como “rei de Salém” e “sacerdote do Deus Altíssimo”. O Salmo 110 sela a importância de seu sacerdócio pelo solene juramento: “Tu é sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”.[5]
Quem foi Melquisedeque? Ele era uma figura puramente mítica, ou ele era uma pessoa histórica dos tempos patriarcais, a quem os aspectos míticos foram posteriormente atribuídos? A natureza principal de Melquisedeque em Hebreus é sua característica anônima: ninguém o conhecera antes de se revelar a Abraão. No entanto, não é apenas a Epístola aos Hebreus que o enfatiza: é precisamente por causa deste anonimato, sem genealogia ou caraterística de origem, que em diferentes círculos Judaicos da época do período do Segundo Templo, a história bíblica de Melquisedeque se expandiu em uma espécie de biografia mítica. Melquisedeque se tornou um ser pré-existente e imortal; ele foi até mesmo considerado como tendo sido gerado no ventre de sua mãe pela Palavra de Deus: por exemplo, um dos documentos mais antigos e impressionantes descobertos em Qumran —11QMelchizedeck— pertence ao gênero midrashim escatológico típico de Qumran e descreve Melquisedeque até mesmo como um messias escatológico. “Havia aqueles que esperavam que ele fosse o juiz dos Últimos Dias, quando ele, junto com os poderes celestes, indicaria os juízos de Deus para que os justos se tornassem sua propriedade e sua herança”. [6] De 11QMelchizedeck está claro que ele não é um messias terreno: Melquisedeque é descrito aqui como uma figura exaltada e celestial; nesse sentido, os paralelos entre Melquisedeque do Novo Testamento e aquele de Qumran são realmente impressionantes.
A MORTE DO SUMO SACERDOTE
O tema do Sumo Sacerdote morrendo a morte expiatória, e de um pecador cujo pecado é coberto por esta morte, é proeminente no Novo Testamento. Hebreus explica que Jesus foi tanto o sacrifício perfeito e também o Sumo Sacerdote celestial que morreu de uma vez por todas e redimiu os pecadores com sua própria morte: “Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados… entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção”.[7] À primeira vista, parece que não encontramos nada sobre a morte redentora do Sumo Sacerdote na Bíblia Hebraica. Isso é realmente assim?
Em Números 35, lemos sobre as cidades de refúgio fornecendo proteção para quem “mata uma pessoa sem intenção”. Na descrição das cidades de refugiados, encontramos um detalhe interessante: um assassino não intencional deve permanecer na cidade de refúgio até a morte do sumo sacerdote. Quando o sumo sacerdote morre, ele pode voltar para sua casa sem temer a vingança do sangue. Por quê? Como a morte do sumo sacerdote é relevante nesta situação?
A resposta dada séculos depois na discussão Talmúdica poderia surpreender os leitores do Novo Testamento. Os intérpretes Judeus explicam que o homicídio é um pecado que deve ser expiado. Um assassinato não pode ser compensado por um resgate;[8] o sangue deve ser redimido pela morte de outra pessoa. De acordo com essa interpretação, somente a morte do sumo sacerdote pode ser uma expiação adequada. Quando o sumo sacerdote morre, o sangue é redimido e o assassino é libertado.
Essa ligação aparentemente inesperada entre a época do asilo e a morte do sumo sacerdote diz, com efeito, que somente a morte poderia expiar o sangue. Assim, pela primeira vez na Bíblia, a morte do Sumo Sacerdote se torna um evento expiatório. Os autores do Novo Testamento captaram este tema da Bíblia Hebraica e o esclareceram.
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[1] Lucas 9:20-22
[2] Daniel 7:13
[3] Matthew Black, The Son of Man in the teaching of Jesus, Expository Times, lx, pp.32
[4] Hebreus 7:15
[5] Salmos 110:4
[6] David Flusser, Judaism and the origins of Christianity, Jerusalem, 1988 , p.192
[7] Hebreus 9:11-12
[8] Números 35:31
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