O Que é Isto Que Deus Nos Tem Feito?

Eles «tremiam entre si»

Da última vez, estávamos observando os irmãos durante seu primeiro encontro com José. Vimos que imediatamente eles sentiram a ligação entre este encontro e o crime que vinham escondendo todos esses anos. De alguma forma, eles sabiam que era tudo sobre seu irmão há muito vendido, no entanto, eles ainda creditavam o que estava acontecendo aos caprichos deste Vice-Rei Egípcio e, consequentemente, apenas a uma reviravolta infeliz dos acontecimentos. Portanto, durante este encontro ainda ouvimos formas verbais impessoais e passivas: «essa aflição veio sobre nós» ou, como Ruben disse: «seu sangue agora é exigido de nós». É interessante que Deus não seja mencionado aqui ainda; eles ainda precisam entender que ninguém menos que o próprio Todo-Poderoso os tornou participantes deste jogo. Mas eles virão a entender —porque outra lógica invisível começa a emergir através das circunstâncias visíveis aparentemente irracionais e inconsistentes— a lógica do movimento do Espírito de Deus no coração da pessoa que Ele está buscando.

Os irmãos voltaram e um deles percebeu que a prata que ele usou para pagar os grãos foi devolvida em seu saco. «Desfaleceu-lhes o coração, e atemorizados, entreolhavam-se dizendo: “Que é isso que Deus nos fez?”». Eu quero que vocês vejam esta transição profunda: do impessoal «seu sangue é exigido» para «que é isso que Deus nos fez?». Não é tão evidente na maioria das traduções, mas em Hebraico, essa transição é muito clara: das formas verbais impessoais e passivas descrevendo apenas circunstâncias infelizes, para a compreensão de que é Deus quem está fazendo isso com eles.

O Hebraico diz literalmente aqui que eles «tremiam entre si». Afinal, eles simplesmente desceram ao Egito para comprar grãos (assim como muitos séculos depois a Samaritana simplesmente foi ao poço em busca de água) e certamente não esperavam, muito menos desejavam, algo incomum acontecendo nesta viagem. O que eram essas coisas estranhas que agora estavam acontecendo com eles? Como um rolo de filme duplamente exposto com suas imagens sobrepostas, podemos ver a realidade de Deus, ainda invisível, colocada sobre suas vidas rotineiras e começando a se manifestar. E se nos lembrarmos da «interrupção inesperada» de Gênesis 38, podemos sugerir que foi Judá, aquele que experimentou a terrível tragédia de perder dois filhos, que se arrependeu, que tinha um coração quebrantado e humilde, quem disse essas palavras: «O que é isso que Deus nos fez?». A Torá não o revela, e neste momento, não separa Judá de seus irmãos, mas sabemos que separou Judá antes e o separará depois. Nós o vimos se arrependendo e confessando em sua história com Tamar, e mais tarde veremos o discurso e a confissão de Judá que tocará profundamente o coração de José e fará com que ele se revele a seus irmãos. Portanto, acho que podemos concluir com segurança que Judá é o mais sensível ao movimento do espírito de Deus nesta história e é ele quem começou a entender que tudo que está acontecendo com eles não foi simplesmente uma reviravolta do destino, mas Deus fez isto com eles.

A segunda viagem

Quando os irmãos voltaram para Canaã, eles estavam assustados e confusos. Sim, eles trouxeram os grãos para casa e até mesmo a prata que pagaram foi de alguma forma devolvida, mas de alguma forma essa história Egípcia continuava a incomodá-los (além disso, Simeão foi deixado lá e eles tinham que resgatá-lo de alguma forma). Embora a princípio Jacó se recuse enfaticamente a permitir que Benjamin volte com eles, como se encerrasse o assunto por completo, acho que todos sabiam em seus corações que essa história estava destinada a continuar.

Os paralelos entre a venda de José e esta segunda parte da história são notáveis. Exatamente como no Capítulo 37, além da voz anônima de todos os irmãos («eles disseram uns aos outros…» – Gênesis 37:19, Gênesis 42:21), ouvimos duas vozes distintas aqui. A primeira pertence a Ruben: «Mas Ruben disse a seu pai: “Mata a meus dois filhos, se to não tornar a trazer”»Essas palavras soam tão estranhas, afinal, os filhos de Ruben são netos de Jacó. Por que Jacó mataria seus próprios netos? Já o discutimos, no entanto, como um claro eco da tragédia de Judá. Se, aos olhos dos irmãos, a morte dos dois filhos de Judá foi o julgamento e punição de Deus por não trazer José de volta, então podemos entender que Ruben está na verdade dizendo: Eu trarei Benjamin de volta, e se não, estou preparado pagar o mesmo preço.

No entanto, nada acontece depois dessa promessa emocional de Ruben, assim como nada acontece depois de suas palavras emocionantes no Capítulo 37. Como na história da venda de José, é a voz de Judá que se torna decisiva aqui. Ruben parece ter boas intenções, mas não tem caráter para acompanhar, ele não tem autoridade para fazer isso acontecer. No Capítulo 37, ele queria salvar José, mas no final, ele não o fez, foi a voz de Judá que selou o destino de José. No Capítulo 42, ele quer que Jacó deixe Benjamin ir com eles para o Egito, mas, mais uma vez, nada acontece até que Judá intervenha.

É interessante que, ao contrário de Ruben, Judá não faz nenhuma promessa solene, não jura, ele apenas diz: «Mande o rapaz comigo… Eu serei responsável por ele; da minha mão o requererás» mas, mais uma vez, é só depois de sua intervenção que tudo muda. Judá recebeu essa autoridade desde o início e, portanto, aqui novamente é sua voz que se torna decisiva e faz a diferença. Além disso, em Hebraico podemos ver como essa autoridade surpreendente afeta seu pai. Depois das palavras de Judá, Israel (Jacó) disse: אֵפֹוא   אִם־כֵּן – «Se… assim». A palavra אֵפֹוא é uma palavra redundante em Hebraico, usada apenas para fins estilísticos; definitivamente reflete aqui algum processo interno no coração de Jacó: mesmo que ele não tenha recebido nenhum argumento racional adicional, após as palavras de Judá ele foi compelido a deixar Benjamin ir.

Assim, junto com Benjamin, os irmãos voltaram ao Egito. Suponho que eles estavam cheios de expectativas de tristeza e desgraça. Eles estavam com medo de serem acusados de roubar a prata que haviam encontrado em seus sacos; não sabiam se encontrariam Simeão vivo e se ele seria devolvido a eles; e, acima de tudo, temiam que Benjamin, em cuja vinda o magistrado Egípcio insistira, por algum motivo fosse ser tirado deles. Quando, por ordem de José, foram trazidos para sua casa, «os homens tiveram medo… e diziam: “É por causa do dinheiro que da outra vez voltou em nossos sacos, para nos acusar e arremeter contra nós, escravizar-nos e tomar nossos jumentos”».[1] No entanto, o mordomo da casa de José, a quem eles tentaram devolver a prata, respondeu-lhes: «Paz seja convosco, não temais; o vosso Deus, e o Deus de vosso  pai, vos deu tesouro nos vossos sacos… E lhes trouxe fora a Simeão».[2] Portanto, ao contrário do que esperavam, tudo começou a não sair tão mal afinal, e ficou ainda melhor depois que, mais uma vez, agora com Benjamin eles,vieram e se colocaram diante de José…

 

[1] Gênesis 43:18.

[2] Gênesis 43:23.

 

Os conhecimentos que vocês leem nessas páginas são típicos do que compartilhamos com nossos alunos durante os cursos DHB (Discovering the Hebrew Bible/Descobrindo a Bíblia Hebraica) ou WTP (Weekly Torah Portion/Porção Semanal da Torá). Se esses artigos despertarem seu interesse por descobrir os tesouros escondidos da Bíblia Hebraica, ou estudar em profundidade a Parashát Shavúa, junto com os conhecimentos do Novo Testamento, ficaria feliz em fornecer mais informações (e também um desconto de professor para os novos alunos) em relação aos cursos da eTeacher   (juliab@eteachergroup.com). Além disso, trechos de meus livros estão incluídos neste artigo (e muitos outros posts aqui), então se vocês gostam dos artigos neste blog, vocês podem gostar também dos meus livros, vocês podem obtê-los aqui.

 

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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