Retratos Bíblicos: Quase Um Pai

Continuamos a desenhar o retrato bíblico de Abraão —seguindo sua jornada pelo livro de Gênesis—. Os capítulos 13 e 14 são tão claramente marcados pelo nome de Ló que temos que parar aqui para entender o relacionamento de Abraão com seu jovem sobrinho. Isso certamente forneceria uma pincelada adicional ao nosso retrato.

O tio e o sobrinho

A primeira vez que vemos o nome de Ló é no final de Gênesis 11. O versículo 27 diz que «Harã gerou Ló», e então o versículo seguinte diz que «Harã morreu antes de seu pai Terá»Em outras palavras, Harã morreu prematuramente, deixando órfão seu filho Ló. Ló era um garotinho doce, um adolescente amargo ou um jovem adulto com sua própria família quando seu pai faleceu? Foi neste momento de luto e pesar que Ló estabeleceu esse relacionamento especial com seu tio Abrão? Abrão tinha se tornado quase um pai para seu sobrinho órfão de pai? Ló tinha se tornado quase um filho para seu tio sem filhos? Não sabemos ao certo quando e como isso aconteceu, mas podemos ter certeza de que isso aconteceu em algum momento; caso contrário, não há explicação para essas palavras simples de Gênesis 12: 4-5: «Então Abrão partiu como o senhor lhe falara, e Ló foi com ele… Então Abrão tomou a Sara, sua mulher, e a Ló,  filho de seu irmão…».

Quando Abrão partiu para Canaã em total obediência ao chamado de Deus, ele estava disposto a deixar para trás tudo e todos. Ele levou com ele apenas suas posses —e uma vez que lemos que seu sobrinho pertencia a este grupo das «posses» de Abrão—, percebemos que ele deve ter tido um relacionamento íntimo e especial com ele. Essa relação também tinha que ser mútua. Aparentemente, Ló amava e respeitava muito seu tio, porque não somente Abrão estava disposto a levá-lo (versículo 5), mas o próprio Ló estava disposto a deixar tudo e seguir seu tio para uma terra completamente desconhecida (versículo 4).

As Escrituras não dizem nada sobre o período de Ló no Egito, mas quando voltam do Egito, o tio e o sobrinho se separaram. Gênesis 13:6 descreve o momento em que eles se separam: «E a terra não podia sustenta-los, para que habitassem juntos, porque eram muitos os seus bens; de sorte que não podiam habitar um na companhia do outro».[1] Na verdade, refere-se às suas posses como sendo tão grandes que não podiam habitar juntos, mas, de alguma forma, o leitor tem a sensação de que havia mais do que esse conflito, de apenas compartilhar a terra. Por mais complicado que um relacionamento «pai-filho» possa ser, um relacionamento «quase pai quase filho» é ainda mais complicado. Inevitavelmente chega o momento em que as temidas palavras: «Você não é meu pai, você não pode me dizer o que fazer», perfuram o coração do «quase pai»com a sua verdade trágica. Eu acho que foi em um momento tão insuportavelmente triste e doloroso que Abrão, exausto por suas discussões intermináveis, finalmente desistiu e disse com um coração pesado para seu «quase filho»: «Não haja contenda entre mim e ti, e entre meus pastores e os teus, porque somos parentes chegados. Peço-te que te apartes de mim…»[2]

O pleno e simples significado deste texto indica que os desentendimentos foram em primeiro lugar entre Abrão e seu sobrinho —«entre mim e ti»— e só então entre os pastores: «entre meus pastores e os teus pastores»Quando Abrão acrescenta «pois somos parentes chegados», soa como uma discussão perdida, como um triste lembrete de que eles ainda são familiares, apesar de todos os argumentos e em resposta às palavras cruéis que provavelmente foram ditas em algum momento: «Você não é meu pai; você não pode me dizer o que fazer».

Abençoados são os pais que nunca tiveram que olhar para o seu filho (ou alguém que é como um filho para eles) e dizer-lhe: «Peço-te que te apartes de  mim… Se você for para a esquerda, eu irei para a direita; ou, se você for para a direita, eu irei para a esquerda».[3] Como qualquer pai faria, Abrão deixa Ló escolher, e Ló, sem muita hesitação, pega o melhor —ou o que ele achava ser o melhor—, do ponto de vista natural. Surpreendentemente, Ló escolhe um lugar onde ele imagina que ele não precisaria depender tanto de Deus, porque estava bem regado em todos os lugares.[4] Muito mais tarde, no capítulo 19, quando Deus desce para destruir Sodoma e Gomorra, essa falta de disposição para confiar em Deus quase custou a vida a Ló, mas mesmo em nossa passagem atual podemos ver claramente que Ló prefere não depender demais de Deus. Ele definitivamente sabe sobre Deus, ele passou tempo suficiente com seu tio Abrão para saber quais são os caminhos de Deus —Pedro chama Ló de «justo»— mas ele prefere andar por suas próprias forças, e ele realmente não acha que precisa de Deus para esta caminhada.

Muito em breve, claro, Ló se encontra em apuros. O problema acontece no próximo capítulo, quando os reis vizinhos «fizeram guerra com… o rei de Sodoma e também levou Ló, filho do irmão de Abrão, que morava em Sodoma, e seus bens, e partiu».[5] Novamente, bem-aventurados são os pais que nunca experimentaram o tormento de ver o filho se separar e escolher um caminho diferente e, em seguida, o veem em apuros. O capítulo 14 não nos diz como Abrão se sente quando ele ouve que seu sobrinho é levado cativo —mas tampouco os capítulos 12, 13 ou 22 falam de seus sentimentos—. Em vez disso, descobrimos que ele perseguiu os culpados até Dan, no norte, a quase 300 quilômetros de Sodoma; que ele esmagou os inimigos em Hobá, ao norte de Damasco; que ele libertou seu sobrinho e recuperou as posses de Ló; e que ele fez tudo isso com 318 de seus servos (que serviram como soldados nesta batalha, mas claramente não eram treinados para serem soldados).

«Ouvindo Abrão que seu sobrinho estava preso, fez sair  trezentos e dezoito homens dos mais capazes, nascidos em sua casa, e os perseguiu até Dã… trouxe de novo todos os bens, e também a Ló, seu sobrinho, os bens dele, e ainda as mulheres e o povo».[6]

Tanto quanto sabemos, Abrão era um homem muito pacífico. Nós não o vemos envolvido em batalhas como Davi; na verdade, esta é a única vez que lemos sobre ele indo para a guerra. Isso diz muito sobre ele, porque nem mesmo era sua guerra; ele definitivamente poderia ter ficado em casa. Em vez disso, ele se levantou e correu 300 quilômetros para resgatar Ló. Não porque gostasse de guerras (ele não gostava); não porque ele esperasse se tornar rico nessa guerra (na verdade, ele não levou nada para si mesmo, de acordo com Gênesis 14:21-24); não porque ele e Ló eram extremamente próximos e semelhantes (eles não eram, neste momento). Ele foi porque Ló tinha sido como um filho para ele e seu coração paternal foi totalmente esmagado quando soube que Ló estava em apuros. Abraão teve o coração de um pai antes mesmo de se tornar pai.

Dois reis

Aqui, no final do capítulo 14, encontramos outra história interessante. Um leitor Cristão conhece este episódio como «Abraão e Melquisedeque» (muitas Bíblias até mesmo inserem este título antes dos versículos 18-20 de Gênesis 14), mas na verdade aqui, no vale de Savé («isto é, o vale do rei»[7]), não um, mas dois reis se aproximam de Abrão: Bera, rei de Sodoma, cumprimenta-o no versículo 17, e então Melquisedeque, rei de Salém, traz pão e vinho e o abençoa nos versículos 18-20.

«17  E o rei de Sodoma saiu ao encontro dele  no vale de Savé (isto é, o vale do rei), depois de  seu retorno da derrota de Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele.

18  Então Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; ele era o sacerdote do Deus Altíssimo». 

Não um, mas dois reis estão aquí mas, por alguma razão, esse fato, juntamente com a tensão dramática de toda a situação, geralmente é esquecido. Por que esses dois reis, representando valores completamente diferentes, aparecem juntos?

A história ganha muito mais clareza quando lida em Hebraico, onde os próprios significados das palavras Hebraicas nos iluminam quanto ao que realmente está acontecendo aqui. O encontro acontece no vale de Savé, e a raiz Hebraica שוה  (shaveh) tem dois significados principais: igual  ou digno de . Além disso, em Hebraico, temos uma expressão: ir ao vale de Savé,  להגיע לעמק שווה que significa «ir a um compromisso». Os dois reis se aproximam de Abrão simultaneamente porque este é um teste que Abrão tem que passar. Suas ofertas podem parecer quase iguais, mas Abrão teve que escolher «o digno». O nome «Melquisedeque»é uma transliteração do Hebraico מַלְכִּי־צֶדֶֿק  (malki-tzedek), «meu rei é justiça». O nome Bera:  בֶּ-רַע significa «com o mal» ou «no mal»Assim, o Hebraico deixa claro que é aqui, neste vale, que Abrão tinha que escolher entre a justiça e o mal; é aqui, neste vale, que Abrão foi testado e tentado a comprometer seus princípios, sua integridade —sua fé—. Enquanto Melquisedeque abençoa Abrão pelo Deus Altíssimo, assegurando que Abrão saiba que foi Deus quem «entregou seus inimigos em suas mãos».[8] O rei de Sodoma oferece-lhe uma sutil tentação. Felizmente, Abrão reconhece a verdade e a autoridade de Melquisedeque, e recusa a tentação de Bera e assim passa por mais um teste de fé.

 

[1] Gênesis 13:6

[2] Gênesis 13:8

[3] Gênesis 13:9

[4] Gênesis 13:10

[5] Gênesis 14:2,12

[6] Gênesis 14:14-16

[7] Gênesis 14:17

[8] Gênesis 14:20

 

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About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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