Jerusalém E Roma: Juntas Ou Em Seu Lugar?

Missão ainda não cumprida

Este é o meu último artigo sobre o livro de Atos. Quando comecei esta série, há quase um ano, escrevi: «Há muito tempo, eu queria ler o livro de Atos junto com meus leitores. Muitas vezes, este livro em particular é percebido como uma linha de demarcação, como uma declaração de separação de alguma coisa Judaica». Sim, todo o Novo Testamento foi amplamente mal interpretado e mal compreendido, no entanto, o livro de Atos é especialmente fundamental para entender esta separação dos caminhos. Portanto, tentei desvendar o caráter Judaico do livro de Atos demonstrando seu contexto histórico e cultural Judaico do século I para mostrar a vocês os detalhes que pertenciam ao contexto Judaico que não são óbvios para o leitor Cristão.

No entanto, com tudo o que foi escrito e dito, acredito que a parte mais importante da minha missão no livro de Atos ainda não foi cumprida e é isto que vamos fazer hoje: obter a perspectiva adequada deste livro. Todos sabemos que a narrativa dos Atos começa em Jerusalém e termina em Roma e não podemos ignorar este fato. Nesse sentido, o livro é muito claro, de fato: a mensagem de Jesus tinha que ir aos Gentios; teve que se espalhar de Jerusalém a Roma, o itinerário está definido. No entanto, todos sabemos que qualquer navegador (aqui, em Israel, é sempre o Waze) pode nos levar ao mesmo destino por rotas muito diferentes. Além disso, se perdermos uma curva ou tomarmos uma curva errada, nosso navegador recalcula para nos levar de volta ao caminho certo (alguns até dizem: «Recalculando»). Talvez seja necessário fazer aqui também algum recálculo? Precisamos aceitar as interpretações Cristãs tradicionais? É hora de restaurar a interpretação original é hora de uma mudança de paradigma novamente.

Torto e reto

Antes de fazermos isso, no entanto, gostaria de lembrá-los o quanto os caminhos de Deus e os caminhos de Israel pareciam quase sinônimos para os primeiros crentes. Vamos voltar para Atos 13. Depois que Paulo e Barnabé são enviados de Antioquia, eles viajam para a cidade de Pafos, em Chipre, onde o Procônsul Romano está disposto a ouvi-los. No entanto, alguém de nome Elimas, descrito como falso profeta e feiticeiro, se opõe a eles, «fazendo o possível para afastar o governador da fé». Então Saulo, também conhecido como Paulo, cheio do rúaj hákódesh, olhou diretamente para ele e disse: «Filho de Satanás, cheio de fraude e maldade! Seu inimigo de tudo que é bom! Você nunca vai parar de torcer os caminhos retos do Senhor?».[1]

Escolhi propositadamente usar esta tradução aqui (Bíblia Judaica Completa), pois ela traduz o texto Grego com exatamente as mesmas palavras que precisamos para descompactar a mensagem de Lucas. Paulo poderia ter dito mil coisas diferentes para Elimas: Você nunca vai parar de fazer suas más ações? Você nunca vai parar de se opor a Deus? Você nunca vai parar de resistir à verdadeira fé?, então, por que ele usou essa frase peculiar sobre torto e reto?

Para responder a esta pergunta e ver a mensagem escondida por Lucas nesta história, gostaria de lembrá-los que o nome bíblico para os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó é «Israel»: são filhos de Jacó, que foi chamado Israel  depois de ter lutado com o homem misterioso em Penuel. «O homem» que lutou com Jacó o abençoou e, ao abençoá-lo, mudou seu nome para Israel. Ele disse: «Seu nome não será mais Jacó, mas Israel, pois você lutou com seres divinos e humanos, e prevaleceu». Portanto, acredita-se amplamente que a palavra «Israel» vem da palavra Hebraica, שרית , que no Hebraico bíblico significa «lutar», «exercer influência», «prevalecer».

Existe, contudo, uma forma adicional de interpretar este nome, e esta forma nos ajuda a compreender a profundidade da transformação de Jacó para Israel, de Ya’akóv para Yisra´él. Acredito que as palavras de Paulo em Atos 13 são uma clara alusão a esse caminho. Em Hebraico, o nome Israel pode ser lido como (ישר-אל; yashár-Él). A palavra Hebraica, (יָשָׁר; yashár) significa reto, no uso bíblico, também pode significar uma «pessoa honesta, justa e temente a Deus». A raiz עָקֹב֙, por outro lado (a raiz do nome Ya’akóv) significa «torto», como no versículo: «o torto (הֶֽעָקֹב֙) será endireitado».[2] Isto é exatamente o que significa esta transição de Jacó para Israel: Deus endireitou o torto!

Agora podemos entender a escolha de palavras de Paulo. De fato, Paulo diz a Elimas: «Seu comportamento é o oposto da própria definição de Israel!». Vocês não acham que esta é uma lição muito importante do Apóstolo aos Gentios? Fazer algo contra Deus, opor-se à fé, significa… ir contra o próprio significado da palavra «Israel».

Mudança de paradigma: novamente

Apenas algumas semanas atrás, estávamos discutindo a alegoria de Paulo em Gálatas. Então também dissemos que precisávamos de uma mudança de paradigma. Para ler a alegoria de Paulo da forma como foi lida durante séculos pela Igreja, algumas crenças tiveram que ser pressupostas: Primeiro, Ismael era apenas um subproduto no caminho para Isaque, e somente Isaque era essencial no plano de Deus; em segundo lugar, a Aliança do Sinai (e o Antigo Testamento) era apenas um subproduto no caminho para a Nova Aliança, e somente a Nova Aliança era essencial no plano de Deus. Aqui é a mesma coisa: se supusermos que toda esta parte «Jerusalém» e «Judaica» era apenas um subproduto, uma parada de trânsito no camino para o destino final —Roma e os Gentios— então podemos realmente ver esta trajetória bidimensional, linear, onde, mais uma vez, as últimas e melhores partes substituem as anteriores «imperfeitas»: «Roma» substitui «Jerusalém». Infelizmente, muitos comentaristas Cristãos tradicionais ao longo da história leram estes versículos exatamente desta maneira, usando este livro como uma justificativa para Roma substituir Jerusalém.

Não sabemos exatamente quando os Atos foram escritos, diferentes estudiosos sugerem datas diferentes, mas em qualquer caso, seria no final do primeiro século ou o mais tardar, no início do século II. E já no início do século II, no tratado de Justino Mártir «Diálogos com Trifão», encontramos não só a expressão muito clara de tal substituição, mas também o seu fundamento «bíblico». Comentando a história de Noé e seus filhos no final de Gênesis 9, ele aponta o versículo, que Deus engrandeça Jafé, «e que ele habite nas tendas de Sem»[3] como uma palabra profética sobre como no futuro Jafé, as nações Gentias que receberam o Cristianismo, em seu entendimento, se apoderariam das tendas de Sem, ou seja, Israel. Roma substitui Jerusalém, como no livro de Atos. De acordo com este conceito, Jafé viverá nas tendas de Sem em vez de Sem, não junto com Sem.

Vocês conhecem a fábula infantil sobre uma raposa e uma lebre: a raposa tinha uma cabana feita de gelo e a lebre uma casinha de palha. A cabana de gelo da raposa derrete e a lebre a leva, apenas para descobrir que a raposa a expulsa e toma sua casa. Isto equivale ao que aconteceu com Israel e o Cristianismo e tão rapidamente como no século II. A interpretação tradicional do livro de Atos legitimou definitivamente este processo. Eu gostaria de sugerir que o significado original do versículo sobre Jafé, «que habitará nas tendas de Sem», não assumiu de forma alguma o despejo de Shem destas tendas, assim como a lebre não suporia que, ao deixar entrar a raposa sem-teto, ela logo se encontraria na rua. A interpretação dos comentaristas Cristãos, porém, serviu apenas para legitimar o processo de exclusão de Israel dos planos e bênçãos de Deus, que naquele momento já avançavam a todo vapor.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que o livro de Atos começa em Jerusalém e termina em Roma. No entanto, não deveríamos ver Roma e Jerusalém juntas, não Roma em vez de Jerusalém? Acredito que a perspectiva adequada seria esta: de acordo com o livro de Atos, o Evangelho tinha que sair dos Judeus e de Jerusalém e alcançar os Gentios em todos os lugares na Grécia, em Roma e além. No entanto, em vez de ver um itinerário linear, onde «Roma» substitui «Jerusalém», devemos ver os círculos que vão de Jerusalém até Roma. Jerusalém não é excluída ou substituída, os Judeus ainda são o povo de Deus  – «pois os dons gratuitos de Deus e seu chamado são irrevogáveis».[4]

 

[1] Atos 13:10.

[2] Isaías 40:4.

[3] Gênesis 9:27.

[4] Romanos 11:29.

 

Trechos de meus livros estão incluídos neste artigo (e muitos outros posts aqui), então se vocês gostam dos artigos deste blog, vocês podem gostar também dos meus livros, vocês podem obtê-los aqui.

As ideias que vocês leem nestas páginas são típicoas do que compartilhamos com nossos alunos durante as aulas de DHB (Discovering the Hebrew Bible/Descobrindo a Bíblia Hebraica) ou WTP (Weekly Torah Portion/Porção Semanal de Torá). Se esses artigos despertarem seu interesse por descobrir os tesouros escondidos da Bíblia Hebraica, ou estudar em profundidade a Parashát Shavúa, juntamente com os conhecimentos do Novo Testamento, ficaria feliz em fornecer mais informações (e também um desconto de professor para os novos alunos) em relação aos cursos eTeacher (juliab@eteachergroup.com).

About the author

Julia BlumJulia is a teacher and an author of several books on biblical topics. She teaches two biblical courses at the Israel Institute of Biblical Studies, “Discovering the Hebrew Bible” and “Jewish Background of the New Testament”, and writes Hebrew insights for these courses.

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